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Extremismos e xenofobia crescentes ampliam relevância da Declaração dos Direitos Humanos

Eleanor Roosevelt (Estados Unidos) foi a primeira presidente da Comissão de Direitos Humanos, em 1949. (Foto: ONU)

Setenta anos depois de sua aprovação, a Declaração Universal dos Direitos Humanos permanece essencial para os países e a comunidade internacional, diante das crescentes ondas de xenofobia, discursos de ódio e perseguições de minorias no mundo todo.

A avaliação é de especialistas em direito internacional e direitos humanos entrevistados pelo Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio), na ocasião do aniversário de 70 anos do documento.

Aprovada em 10 de dezembro de 1948, a Declaração foi construída a partir do esforço conjunto da comunidade internacional para garantir que os horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) — incluindo o Holocausto — jamais se repetissem.

Considerada a base da luta universal contra a subjugação e abuso de povos, o documento estabelece obrigações para a atuação de governos, de maneira a garantir a proteção de comunidades e indivíduos — independentemente de raça, etnia, religião, identidade de gênero, orientação sexual ou nacionalidade.

Contudo, sete décadas depois, os 30 artigos do documento ainda são alvo de ataques globalmente, inclusive por parte de líderes políticos. Esse cenário faz com que seja necessária uma defesa mais resoluta dos princípios da Declaração, afirmaram os especialistas.

Maurício Santoro, professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), lembra que a Declaração é pilar para muitas legislações nacionais, funcionando como referencial daquilo que é desejável em termos de direitos humanos e políticas sociais.

“A importância dela é maior hoje do que era há dez anos, porque estamos vivendo no mundo um momento de crescimento de extremismos políticos, de fortalecimento de agendas muito hostis aos direitos humanos, a questões como proteção das minorias, a uma diversidade étnica e cultural, que nos lembra muito o que existia no mundo nos anos 1930, no período exatamente anterior à Segunda Guerra Mundial e ao preparo da Declaração Universal.”

Para Santoro, a onda global de extremismo funciona como um lembrete da importância da Declaração atualmente. “No momento em que a gente está vendo várias dessas bandeiras (extremistas) ressurgirem, olhar para o texto da Declaração tem um significado especial. Vale para muitos países, não só para o Brasil”, salientou.

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Na opinião de Renan Quinalha, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), ao mesmo tempo em que a comunidade internacional conseguiu “multiplicar as formas de proteção aos direitos humanos, também as violências e as formas de violação se ampliaram e se diversificaram”, o que torna a Declaração ainda relevante.

“O desafio fundamental dos direitos humanos, há 70 anos e ainda hoje, é diminuir essa distância entre as declarações, os princípios, e a prática, a realidade. Ainda há uma distância muito grande. Nesse sentido, a Declaração é mais atual do que nunca e necessária”, disse Quinalha.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, já alertou em diversas ocasiões para a importância da Declaração diante do recrudescimento dos discursos de ódio no mundo. Segundo ele, o “perverso fenômeno do populismo e do extremismo tem alimentado um frenético crescimento de racismo, xenofobia, antissemitismo e outras formas de intolerância”.

“Minorias, comunidades indígenas e outros sofrem discriminação e abuso em várias partes do mundo”, afirmou, lembrando abusos contra refugiados e migrantes e pessoas que são lésbicas, gays, bissexuais, trans ou intersex (LGBTI). O secretário-geral da ONU também pediu proteção aos defensores de direitos humanos e jornalistas.

Nos últimos quatro anos em que esteve à frente do Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), Zeid Ra’ad Al Hussein também criticou líderes políticos que têm defendido publicamente violações aos princípios da Declaração. Houve menções a declarações da primeira-ministra britânica, Theresa May, e do presidente norte-americano, Donald Trump.

Em dezembro de 2017, Zeid alertou que “uma pressão sem precedentes sobre as normas internacionais de direitos humanos está ameaçando o conjunto único de proteções estabelecido após o fim da Segunda Guerra Mundial”.

O mesmo tom foi dado por Michelle Bachelet, nova chefe de direitos humanos da ONU, que assumiu o cargo em setembro. Para ela, este é um período de teste para os princípios e instituições das Nações Unidas. “O multilateralismo está erodindo e, com ele, os valores e normas que sustentam o compromisso global com a igualdade e dignidade humana”, declarou.

Brasil

No Brasil, a percepção de que os direitos humanos só existem para defender criminosos têm crescido entre a população brasileira. Segundo pesquisa Datafolha de novembro de 2016, 57% dos brasileiros disseram concordar com a frase “bandido bom é bandido morto” — uma expressa violação aos princípios da Declaração, que prevê o devido processo penal do Estado democrático de direito e, mais do que isso, o direito à vida.

Ato realizado em março de 2018 pela ONG Rio de Paz lembra mortes de adolescentes e crianças vítimas da violência no Rio de Janeiro. (Foto: Agência Brasil/Fernando Frazão)

“Acho que há uma incompreensão generalizada sobre os direitos humanos, o que leva a posições como essas, que são construídas por um sensacionalismo da mídia tradicional, por esses discursos de populismo penal, de justiçamento”, disse Quinalha.

Para o professor da UNIFESP, esses discursos ganham força diante de um contexto de índices de violência alarmantes, com mais de 60 mil homicídios por ano no país, e de forte sensação de insegurança generalizada.

“Aí se reduz os direitos humanos, como se estes fossem atributos somente de bandidos, como se fosse algo que diz respeito a uma minoria, seria um privilégio dessa minoria que não mereceria esses direitos”, explicou.

“Na verdade, ainda há um desafio para quem trabalha com direitos humanos, pesquisa e ensina nessa área, que é mostrar que os direitos humanos não são privilégio de nenhum grupo. São, na verdade, direitos e garantias fundamentais que estão no nosso dia a dia, tenhamos ou não consciência disso.”

Quinhalha lembra que a mesma pessoa que diz “bandido bom é bandido morto” é aquela que procura ter direitos trabalhistas, previdenciários, seguridade social — também previstos na Declaração.

“As pessoas querem ter moradia digna, direito ao lazer, direito à alimentação, que também são direitos humanos fundamentais. Elas não querem ver seus direitos violados pelo Estado. Elas querem que o Estado respeite os direitos de propriedade, direito de ir e vir, de organização política, de liberdade de expressão, liberdade artística, assim por diante.”

Para ele, é necessário um trabalho de conscientização por parte de organizações da sociedade civil, academia e veículos da mídia no sentido de lembrar a população de que, mesmo diante de uma realidade violenta, todas as pessoas têm direito a um julgamento dentro dos parâmetros da lei.

“O Estado não pode torturar para obter uma confissão, não pode prender arbitrariamente sem ter uma acusação. O Estado não pode restringir as liberdades sem ter alguma comprovação de uma condenação prévia. Não pode condenar por um crime que não seja definido legalmente”, salientou.

“Isso não significa dizer que essas pessoas acertaram ao cometer crimes, não significa aprovar os atos cometidos por elas. Mas simplesmente dizer que elas continuam sendo humanas, e continuam tendo direito e dignidade da pessoa humana como qualquer outra”, lembrou.

Para Santoro, da UERJ, cabe aos profissionais que trabalham com direitos humanos melhorar a comunicação sobre a real importância da Declaração, saindo de suas “bolhas” acadêmicas. Segundo ele, em paralelo à desconfiança de parte da população em relação aos direitos humanos, há por outro lado curiosidade entre os mais jovens sobre os preceitos da Declaração.

“Isso tem vários desdobramentos possíveis. Um deles é fortalecer o debate sobre a importância dos direitos humanos para o combate à pobreza, à desigualdade, para toda uma agenda social que está presente na Declaração, embora não seja o centro dela”, declarou.

A alta-comissária da ONU para os direitos humanos, Michelle Bachelet. (Foto: ONU/Jean-Marc Ferre)

Nesse sentido, Bachelet lembrou no início deste mês que os “direitos humanos são construídos uns sobre os outros para formar uma base forte e interligada de sociedades sólidas”.

“Os direitos econômicos, sociais e culturais, bem como o direito ao desenvolvimento, ajudam a diminuir o desespero, as queixas e o extremismo violento”, afirmou. “Os direitos civis e políticos e as medidas para promover a igualdade impulsionam um desenvolvimento econômico poderoso e sustentável, para o qual todos os membros da sociedade podem contribuir plenamente”.

“O sistema de direitos humanos não é uma Cassandra, prevendo corretamente crises, mas incapaz de evitá-las. É uma força para a prevenção. Quando é apoiada pela vontade política dos atores-chave, o trabalho efetivo e sustentado em direitos humanos impede, mitiga e ajuda a resolver conflitos: essa é a essência do que fazemos”, concluiu Bachelet.

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