O marabaixo, manifestação cultural que expressa a resistência negra, recebeu na quinta-feira (8) o título de Patrimônio Cultural do Brasil, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Originada no Amapá, a tradição inclui ritmos musicais e danças e remete à vinda dos navios negreiros da África para o Brasil, homenageando os escravos que morreram durante a viagem. Registros históricos mostram que, quando os corpos eram lançados ao mar – daí o nome –, seus companheiros de clausura entoavam hinos de lamento, músicas que hoje são chamadas de ladrões.
Os 22 membros do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan aprovaram a concessão do título por unanimidade. O conselho é composto por especialistas de diversas áreas, como turismo, arquitetura e sociologia e é responsável por apreciar os processos de tombamento e registro.
O anúncio do título foi recebido com satisfação por Valdinete Costa, coordenadora de Ações Afirmativas do Ciclo do Marabaixo na Secretaria Extraordinária para os Povos Afrodescendentes (Seafro) do governo do Amapá: “O reconhecimento é, para nós, uma grande satisfação, um sonho realizado. Um momento ímpar, de muita felicidade. A luta é de resistência. Há muito tempo, a gente vem buscando essa valorização e, enfim, chegou, pelo Iphan.”
Festividade
Difundida entre membros de comunidades negras, os festejos seguem princípios católicos e duram aproximadamente 60 dias, tendo início no Sábado de Aleluia. Única festividade coletiva da capital, o Ciclo do Marabaixo inclui orações típicas, ladainhas, novenas e brincadeiras para crianças que acontecem no perímetro urbano e na zona rural de Macapá.
As cerimônias são marcadas por um processo ritualístico que começa com o ritual de Aceitação, que, conforme conta Valdinete, é quando os participantes acompanham a recepção do festeiro daquele ano – marabaixeiro que fica responsável pela organização daquela edição da festa. O promesseiro, como é também chamado, elege seu santo padroeiro correspondente. “Esse é um momento de oração, de agradecimento”, conta a coordenadora.
Além do Marabaixo de Aceitação, há também o Marabaixo do Mastro e o Marabaixo da Murta. Nessas duas fases, os grupos cortam um toco de árvore que, depois de ser enfeitado com murtas (ramos), está pronto para receber a bandeira do santo a que são devotos. No caso do Ciclo do Marabaixo, os marabaixeiros homenageiam a Santíssima Trindade e o Espírito Santo.
O grupo ainda confraterniza à mesa, onde se servem caldos e o Almoço dos Inocentes, que traz o simbolismo de 13 crianças, representando Jesus e seus 12 apóstolos. “Tudo é voltado para a fé, para o catolicismo”, pontua Valdinete.
Preconceito
A coordenadora conta que, conforme inventário iniciado em 2012, há, no estado, pelo menos 22 círculos marabaixeiros, entre grupos e comunidades que, ao longo dos anos, enfrentaram persistentes ataques, motivados por racismo, já que o marabaixo, embora saúde santos católicos, agrega diversos elementos da cultura negra e é regido por povos tradicionais, como os quilombos.
“Tivemos preconceito, inclusive, de magistrados que usaram de sua autoridade para nos intimidar, no ato de algumas festividades. Mas não paramos de cantar nossos ladrões”, relata a coordenadora. “Nos unimos numa só voz, clamando por respeito e fizemos um ato, que ocasionou no reconhecimento da própria Assembleia Legislativa de criar o Dia Estadual do Marabaixo. Tivemos [oposição] dentro da Igreja Católica. Foram vários atos isolados que nos fizeram ir pras ruas, pedindo valorização”, conta Valdinete.
Desde de 2011, após a aprovação de uma lei estadual, o Dia Estadual do Marabaixo Amapaense é comemorado em 16 de junho. “Com essa certificação, a gente tem certeza de que o marabaixo será visto com outros olhos, mais calorosos. Nós já temos muitos adeptos. Já foi adotado por brancos, indígenas. Antes éramos muito criticados por causa dos tambores”, emenda.
Estima aos ancestrais
Neste ano, a organização do ciclo inaugurou, na capital, o Museu Natalina Costa, cujo acervo resgata a história da pioneira de marabaixo, falecida em 2017. “O marabaixo foi trazido pelos então escravos. E a nossa referência foram nossos ancestrais, que é passada de pais para filhos e a gente vai perpetuando essa tradição. Nossas referências são negros como os pretos velhos. Na minha família, que agora estou gerenciando, estamos na quarta geração [de marabaixo]. Veio da minha bisavó e agora está comigo, e já estou passando pros meus filhos, netos. A gente se baseia muito nos mais velhos, é neles que tem essa referência”, finaliza.
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