Uma coleção notável de 45 obras de 33 artistas contemporâneos latino-americanos compõe a doação feita pela Colección Patricia Phelps de Cisneros (CPPC) à Fundación Museo Reina Sofía. Este gesto permitirá que a coleção do Museu seja significativamente enriquecida, ao mesmo tempo em que impulsiona o projeto de pesquisa que está sendo realizado sobre os movimentos artísticos que surgiram na América Latina desde a década de 1960 até o presente.
As obras, que serão depositadas no Reina Sofía para fazer parte de sua coleção, pertencem à estrutura cronológica enquadrada entre os anos de 1960 e o presente, mas são de especial importância para os anos de 1990 e os primeiros anos do século XXI. Este caráter contemporâneo é precisamente o menos representado dentro da atual coleção de arte latino-americana do Museu e, no entanto, reforça um interesse da instituição, como ficou evidente na recente exposição Ficciones y territorios. Arte para pensar la nueva razón del mundo (2016-2017), organizada pelo Reina Sofía com recursos próprios.
Os 33 artistas reunidos – principalmente do Brasil e da Venezuela, embora existam autores da Argentina, Colômbia, México e EUA (Latinx) – representam uma diversidade geracional e se caracterizam por cultivar um amplo espectro de práticas artísticas: pintura, escultura, instalação, trabalho gráfico, desenho, livros de artista, foto collage, entre outros.
A Colección Patricia Phelps de Cisneros já fez uma generosa doação à Fundación del Museo em 2018, formada por um conjunto de criações com foco em histórias sobre identidade de gênero, território, memória e linguagem.
Os artistas representados nesta doação são: Jaime Castro Oróztegui, Marcos Coelho Benjamin, Sigfredo Chacón, Paulo Climachauska, Eduardo Costa, José Damasceno, José Dávila, Danilo Dueñas, Iran do Espírito Santo, José Gabriel Fernández, Magdalena Fernández, Teresita Fernández, Héctor Fuenmayor, Rubens Gerchman, Fernanda Gomes, Alí González, Ester Grinspum, Arturo Herrera, Oscar Machado, Fabian Marcaccio, Roberto Obregón, Rosana Palazyan, Paulo Pasta, Nuno Ramos, Rosângela Rennó, Miguel Ángel Ríos, Mauricio Ruiz, Valeska Soares, Edgard de Souza Javier Téllez, Marcia Thompson, Angelo Venosa e Augusto Villalba.
A doação: diversidade geracional e variedade de práticas artísticas
Se começarmos revisando os autores com base em seus países de origem, devemos destacar Sigfredo Chacón (Venezuela, 1950), com suas obras Autorretrato (1975) e Dibujo sin título (1987) que combinam pintura, design gráfico e desenho, e permitem traçar a ruptura estética que marca o conceitualismo venezuelano.
Uma figura chave da cena vanguardista venezuelana, cuja obra foge da fácil classificação, é Hector Fuenmayor (Venezuela, 1949), que está representado na doação com quatro obras: o tríptico Cruz y ficción (1978), a instalação Muerte y resurrección (1974-1994), Right and Wrong (1983-1990) e o livro-arte Miranda en la Carraca, algunas transformaciones (1977).
Por sua parte, Roberto Obregón (Colômbia-Venezuela, 1946-2003), explora abordagens conceituais com base em sua experiência como ilustrador botânico. Usando uma variedade de técnicas, incluindo fotografia, aquarela, fotocópias e collage, seus trabalhos em série são um registro da natureza. Em Pe Eme, de sua série posterior Proyecto Masada, o artista lida com os temas do suicídio, violência social e depressão.
Em sua obra Boceto para una historia natural del Edén (1994), José Gabriel Fernández (Venezuela, 1957), usa a materialidade cotidiana: papel de parede com nuances florais interposta em sua folhagem grafite de banheiros e homens para sublinhar que a construção da identidade sexual está intimamente interligada com políticas espaciais. Tablón No 3, feita em 2006, também faz parte do conjunto doado.
A obra de Jaime Castro Oróztegui (Venezuela, 1968) baseia-se em sua formação como escultor e em seu interesse em refletir sobre a paisagem e sua função ao longo da história da arte. Em suas obras Long Island, There is no Mountain Higher (1998) e Paisaje 12.2001 (2001), ele aborda as múltiplas formas de representar a paisagem por meio de uma materialidade manipulada, em que a tecnologia e a matéria-prima criam novas interpretações dos espaços.
Interessado em relações espaciais, Alí González (Venezuela, 1962), utiliza a instalação para questionar o espaço do museu e uma nova ordem que abra canais de comunicação. Sua obra Sin título (2000) é uma cadeira de balanço coberta por uma rede de cordas, que pode ser interpretada como uma materialização das restrições impostas pela construção social de gênero.
O conjunto doado também inclui obras de artistas interessados em experimentações escultóricas, como Oscar Machado (Venezuela, 1953). Em uma peça de sua série Echando raíces (1996-1997), o arame de ferro e o cimento servem como ferramentas para interpelar o espaço, mostrando a leveza do ferro e a imobilidade do peso do cimento.
A artista preocupada com a mobilidade do material, Magdalena Fernández (Venezuela, 1964) está representada neste conjunto com um de seus “desenhos móveis”, intitulado Cubo móvil (1998) em que linhas e estruturas de alumínio incentivam a interação física com seus espectadores.
Augusto Villalba (Venezuela, 1963), oferece reflexões sobre a materialidade e sua função, tanto artística como social por meio de uma linguagem pictórica que busca unir os objetos encontrados e o ruído visual cotidiano. Nela, a cor é um elemento significativo e em sua obra Sin título, da série Jazz (1997), ele usa precisamente a cor como estratégia escultórica.
Por sua vez, Arturo Herrera (Venezuela, 1959) usa fragmentos visuais para criar collages, esculturas e murais que estão entre a legibilidade e a abstração. A trajetória do artista é representada por uma colagem-desenho, Untitled (2004), em que, quase esculturalmente, o trabalho brinca com presença e ausência, com espaço ocupado e vazio.
Conhecido por seu longo trabalho sobre doença mental, loucura e alteridade, Javier Téllez (Venezuela, 1969), é o autor dos seis pôsteres coloridos Cactus prints, da série A season in hell (1997), que retratam cenas na prisão venezuelana de Tocuyito. Cada cartaz tem um slogan para promover a indústria do turismo do país durante os anos 70. A tensão entre imagem e palavra revela o mecanismo de exclusão.
Entre os artistas brasileiros cuja obra foi doada, Rubens Gerchman (Brasil, 1942), pintor e escultor profundamente influenciado pela arte Concreta e Neo-concreta e ligado à arte psicodélica e à pop arte. Suas obras tratam de diversos temas, do isolamento urbano e alienação, até a localização geopolítica da América Latina. A obra doada é Burnt perfume (1971).
Angelo Venosa (Brasil, 1954) é um dos poucos escultores que fez parte da chamada “Geração 80”, um movimento que revalorizou o imaginário e os gestos espontâneos do artista principalmente por meio da pintura. A peça incluída no conjunto é Autorretrato (1999).
Em seu trabalho Sem título (1992), Marcos Coelho Benjamin (Brasil, 1952) utiliza materiais usados com superfícies ásperas e desgastadas para criar esculturas tridimensionais e instalações, enfatizando assim a cultura popular de Minas Gerais, sua tradição por meio do trabalho artesanal e sua reutilização de materiais encontrados.
Ester Grinspum (Brasil, 1955) busca em sua obra, tanto escultural quanto em seus desenhos, uma interioridade que se opõe à clareza e à lógica construtiva ligada à modernidade. Emprega um vocabulário premeditadamente subjetivo, constituído tanto por ícones de sua própria criação, como por aqueles da história da arte. Dois trabalhos em papel sem título de 1997 compõem a contribuição para a doação.
Valeska Soares (Brasil, 1957) destaca-se na vanguarda brasileira desde o final dos anos 1980 ao início dos anos 90. Desde 1992, sua obra tem sido posicionada em múltiplas plataformas, focando em temas como o mundo artístico globalizado, geografia, identidade cultural e nacional, disciplina ou forma. Sem título (from Detour) (2005) e Wishes 22 (1996) são as criações desta autora que se tornam parte da coleção do Museu.
O gravador e escultor Mauricio Ruiz (Brasil, 1958) interroga a si mesmo por meio da matéria e da cor que esta lhe proporciona, indagando sobre os mecanismos que ativamos para nos reconhecer, seja em nossas tradições, em uma comunidade, ou simplesmente como indivíduo tal como se aprecia em obras como Sem título (1995).
Pintor, desenhista e gravador, Paulo Pasta (Brasil, 1959) é um dos grandes pintores de destaque do cenário de São Paulo nos anos de 1990, trabalhando a abstração a partir de uma perspectiva afetiva e poética. Sua é a tela do Sem título, de 1994.
A artista Fernanda Gomes (Brasil, 1960) utiliza sobras de materiais, objetos do cotidiano ou móveis descartados e suas obras se destacam por estarem intimamente ligadas ao espaço em que são implantadas. No caso da obra Sem título, de 1994, ela usou papel e fio.
O pintor e escultor Nuno Ramos (Brasil, 1960) é um artista multifacetado que utiliza diferentes suportes e materiais que combinam gravura, pintura, fotografia, instalação, poesia e vídeo. O livro-arte Balada (1995) é um exemplo disso.
Por outro lado, Rosângela Rennó (Brasil, 1962) utiliza fotografias de arquivos públicos e privados para questionar a natureza da imagem e seu valor simbólico, como ocorre em Sem título (XXYX) –in oblivionem, de 1994. Muito interessada na imagem descartada e na apropriação, Rennó tenta imitar os hábitos do colecionador reunindo imagens diferentes.
Edgard de Souza (Brasil, 1962) faz experimentação com a criação de objetos tridimensionais, desenho, gravura e pintura. Produz objetos e esculturas como Sem título (1997) que exploram a forma humana, aproximando-se de um imaginário surrealista que provoca uma sensação de familiaridade e estranhamento.
Em Sem título (2004), Paulo Climachauska (Brasil, 1962) combina desenho e pintura e para indagar sobre as relações entre arte, economia e sociedade e postula que a linha não é um traço, mas uma sequência matemática que nos permite refletir sobre as conexões entre o valor da obra artística e sua função social.
Rosana Palazyan (Brasil, 1963) faz experimentos com múltiplas técnicas que cruzam diversas escalas – desde bordados e desenhos até performances e instalações urbanas – para criar obras que exploram como a narrativa é construída após os pequenos detalhes. Em Sem título (1994) utilizou tecidos queimados e bordados.
O trabalho de Iran do Espírito Santo (Brasil, 1963) mostra uma sutil subversão do minimalismo por meio de elementos abstratos do cotidiano. Como em Tomogramas (1995) e Sem título (1997), Espírito Santo lida com os atributos táteis dos materiais escolhidos e seus contornos sensuais de formas abstratas simples no espaço.
Explorando a dicotomia entre o único e a série – entre o contínuo e o descontínuo – as pinturas escultóricas de Marcia Thompson (Brasil, 1968) do estilo Transparente (1996) demandam um olhar não uniforme, capaz de perceber as singularidades dentro de um total aparentemente homogêneo.
José Damasceno (Brasil, 1968) conseguiu criar sua própria linguagem sem renunciar à influência de seus antecessores, como Lygia Clark, Helio Oiticica ou Cildo Meireles. Ele combina uma poética sensorial e interativa com um universo pessoal, marcado por suas referências ao surrealismo e seu uso frequente de humor. Faz parte da doação com as obras 2 estudos sobre 1 dimensão perdida (1996) e A carta (nó) (2005).
As obras do argentino Eduardo Costa (1940) incluídas neste grupo – Cuña blanca (1998-1999) e Black Cube (1998-1999) – correspondem às propostas do artista sobre a pintura, criando as suas chamadas “pinturas volumétricas”, formas esculturais construídas exclusivamente com tinta.
Miguel Ángel Ríos (Argentina, 1943) combina uma aproximação rigorosamente conceitual com uma estética “feito à mão” meticulosamente construída. Em sua obra sem título do ano de 1994, esse artista transforma o papelão em um espaço cheio de linhas, convertendo assim, o cotidiano em um território complexo de movimento.
Seu compatriota Fabian Marcaccio (Argentina, 1963) usa técnicas digitais e industriais. Na obra Dead, No No model #2 (1992), fossiliza a tinta, misturando óleo com silicone.
O colombiano Danilo Dueñas (1956), por outro lado, faz experimentos com materiais e objetos encontrados (readymades) para criar construções pictóricas de múltiplas leituras que, ao acompanhar harmoniosamente em seu contexto expositivo, conseguem questionar, evocar e desequilibrar o espectador. Este é o caso de El sembrador (1991) ou Velocidades (2005).
A obra do mexicano José Dávila (1974) tem origem nas linguagens simbólicas que funcionam dentro da história da arte e da cultura visual ocidental. Em obras como em seu livro de intervenção S,M,L,XL (2000), essas linguagens são reconfiguradas como relações contraditórias, levando à correspondência entre forma e conteúdo ao seu limite.
Por último, citaremos a obra Untitled (1997), composta por materiais não tradicionais para criar ilusões óticas de movimento, da norte-americana Teresita Fernández (1968). A artista é conhecida por suas esculturas e instalações públicas em grande escala, feitas de diversos materiais, como fios, alumínio, acrílico, plástico ou contas de vidro.
Sobre a Colección Patricia Phelps de Cisneros
A Colección Patricia Phelps de Cisneros (CPPC) foi fundada na década de 1970 por Patricia Phelps de Cisneros e Gustavo A. Cisneros e é uma das principais iniciativas culturais e educacionais da Fundación Cisneros.
Com sede em Caracas e Nova York, a missão da CPPC é promover uma maior valorização da diversidade, sofisticação e variedade da arte da América Latina, bem como o estudo da arte latino-americana. A CPPC alcança estes objetivos por meio da preservação, apresentação e estudo da cultura material da Ibero-América, do etnográfico ao contemporâneo.
As atividades da CPPC incluem exposições, programas públicos, publicações, bolsas para pesquisa acadêmica e produção artística. O site da coleção (www.coleccioncisneros.org) foi criado para oferecer uma plataforma de debate sobre as contribuições da América Latina para o mundo da arte e da cultura; sua inspiração e ponto de partida é a Colección Patricia Phelps de Cisneros, mas seu objetivo é a descoberta e sua missão é construir uma rede virtual multilíngue de pessoas e ideias.
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