O refúgio e suas consequências: quando os mais atingidos são crianças

Dados da Organização Internacional das Migrações (OIM), da ONU, mostram que em julho deste ano, o número de pessoas que deixaram a Venezuela por causa da crise no país superou a marca dos 4 milhões. Desse total, cerca de 165 mil buscaram refúgio no Brasil, quase sempre entrando no país pela divisa da Venezuela com o estado de Roraima. Em meio às centenas de venezuelanos que continuam chegando ao Brasil todos os dias, não foi possível ignorar o caso da pequena Everianny Del Valle Fuentes, de sete anos.

Integrante da nação indígena Warao, ela chamou a atenção dos voluntários da Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI), responsáveis pelo abrigo Pintolândia, em Boa Vista, destinado ao acolhimento de indígenas refugiados. Ao chegar, Everianny estava quase cega, em decorrência de uma infecção contraída dois anos antes, após ser acometida por sarampo.

Avaliações médicas concluíram que havia alguma chance de salvar seu olho esquerdo. A menina foi transferida com sua mãe e irmã menor para São Paulo pela FFHI, depois encaminhada ao Hospital de Sorocaba, a 80 km da Capital paulista. Em regime de urgência, Everianny foi submetida em julho a um transplante de córnea em circunstâncias extremamente complexas, já que a lesão ocular apresentava marcas profundas.

Vitória

Convalescendo ao lado da mãe Orine, de 23 anos, e da irmã Ederiani, de 2 anos, Everianny recebe todos os cuidados necessários para sua recuperação no Núcleo-Luz de Figueira, comunidade filiada à FFHI no município de Carapicuiba na Grande São Paulo. O processo exige atenção permanente, excelentes condições de higiene e a aplicação de vários colírios ao longo do dia.

Para a médica Rosana Maura Gentil, oftalmologista voluntária da FFHI que acompanha o caso, a jornada da pequena indígena prossegue, sem data para acabar, porque o quadro é complexo e exige cuidados permanentes até a cura completa.

“O sarampo é uma doença infecto contagiosa e, ao se instalar, pode atingir as mucosas do corpo humano. Em situações de desnutrição e baixas taxas de vitamina A, além de conjunturas ambientais como falta de saneamento básico e condições de higiene tópica, abre-se a chance de evolução de complicações como as da garota“, explica.

Medicamentos de hora em hora

Para a Madre Maria Glória, missionária da FFHI que acompanha a situação, os cuidados necessários no pós-operatório exigiram que Everianny e sua família permanecessem no Núcleo-Luz, para garantir a melhor recuperação. “Para a mãe da menina, às vezes é difícil entender a necessidade de respeitar os horários dos colírios e os tipos, porque são vários. Então programamos nossos celulares e ainda fizemos uma tabela, com marcação de cores, para ajudar a orientar a mãe nesses cuidados“, relata. “O ambiente aqui é o que de melhor podemos oferecer a elas, para que o olho esquerdo da menina seja, enfim, preservado.

Próximos passos

Além do processo de recuperação, há um tratamento meticuloso a cumprir e a resposta a cada fase é uma incógnita. “Ainda há uma opacidade do cristalino, um dos componentes do sistema complexo que é o olho humano, que no futuro pode exigir mais uma cirurgia, algo como uma operação de catarata. Por enquanto, não é possível determinar o tempo que será necessário para que o olho esteja completamente recuperado,” explica a médica.

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A luta para salvar a visão de Everianny causou um atraso educativo. Ela ainda não foi alfabetizada e por ora, como a prioridade é salvar o olho esquerdo, a educação ficou em segundo plano. Madre Maria Gloria ressalta a inteligência da menina, que já mostra grande habilidade nos idiomas espanhol e português, muitas vezes para ajudar sua mãe a compreender o que as pessoas falam e vice-versa. “Imagine quando ela puder ter acesso a uma educação formal!”

Outras crianças em risco

Segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), mais de 70 milhões de pessoas estão em deslocamento no planeta, em uma onda migratória só comparável à da 2ª Guerra Mundial, na década de 1940. Desse total, quase a metade, ou cerca de 30 milhões, é de crianças e jovens em idade escolar. Os venezuelanos já são o segundo maior grupo em movimento no mundo, atrás apenas dos sírios, que já são mais de 5,5 milhões. Entre os venezuelanos, a proporção de menores mantém-se em torno de 50%.

“Além das necessidades básicas de sobrevivência, é essencial educar essas crianças assim que são alojadas em acampamentos provisórios, como ocorre em Roraima”, alerta o gestor geral da FFHI, Frei Luciano. A educação em situações de emergência, tema relativamente novo no Brasil, foi abordada recentemente em um seminário promovido pela FFHI que reuniu mais de 400 educadores, psicólogos e assistentes sociais na sede da entidade em Carmo da Cachoeira, Minas Gerais.

“A FFHI tem se dedicado ao tema porque temos consciência das consequências que o refúgio pode causar aos pequenos. Temos estudos aplicados na prática para amparar e curar essas feridas da alma. O esforço para socorrer a pequena venezuelana que chegou praticamente cega até nós é um exemplo disso,” explica.

Crianças envolvidas na conjuntura de refúgio muitas vezes exibem sintomas de medo, pânico, distúrbios do sono, problemas na alimentação, no relacionamento e desenvolvimento pessoal. O caso da pequena Everianny é grave, porém restringe-se à saúde da menina e seu desafio é vencer uma deficiência visual de alto risco. Ela tem plena consciência do que se passa e parece lidar com a questão de forma leve – um talento das crianças. Mas inúmeras outras que passaram por grande estresse e cenas de violência ou carência, quando em segurança, mostram os efeitos desses traumas no dia a dia ou em seus lares. “Também para estas, com feridas invisíveis, buscamos a cura”, finaliza o gestor.

SOBRE A FRATERNIDADE – FEDERAÇÃO HUMANITÁRIA INTERNACIONAL
Fundada em 1987 e sediada em Carmo da Cachoeira (MG), a Fraternidade é uma rede global de caráter filosófico, cultural, humanitário, ambiental e beneficente. Ao longo de 32 anos de existência, mais de 60 mil voluntários já aderiram aos esforços da FFHI pela propagação da paz.

A entidade congrega 23 associações civis, nacionais e internacionais, com grupos coligados que atuam em 18 países. Entre suas principais atividades estão missões humanitárias em situações críticas em diversas regiões do mundo, já realizadas em países como Uruguai, Etiópia, Turquia, Quênia, Congo e Nepal, além de missões no sertão brasileiro e em Mariana e Brumadinho, após o rompimento de barragens com rejeitos de mineração.

As principais missões em andamento ocorrem em Roraima desde 2016, e na Colômbia desde setembro de 2018, ambas em apoio a centenas de refugiados que chegam diariamente da Venezuela. As missões são realizadas pela FMHI – Missões Humanitárias Internacionais, divisão da FFHI.

De ação independente e neutra, a FFHI atua sem vínculos políticos ou econômicos e é não sectária, acolhendo todos os credos, culturas e religiões. Todas as atividades são financiadas por doações.

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