No final do mês passado, os militares que estiveram no Quartel-General do Exército Brasileiro em Brasília se surpreenderam com a presença de um grupo inusitado de visitantes: 12 refugiados e migrantes da Venezuela frequentavam os estúdios da rádio Verde Oliva, operando equipamentos e realizando entrevistas.
Usando uma camiseta da rádio comunitária chamada “La Voz de los Refugiados”, que opera em alguns dos abrigos da Operação Acolhida em Boa Vista, os visitantes vislumbravam um futuro promissor como resultado desta singular experiência.
Entre eles, o jovem Jesus Gavides, que vivia em Caracas, fazia planos para o futuro. “Estou encantado com tudo. Tenho 19 anos e o que estou vivendo é um giro em minha vida profissional. Agora sinto que tenho perspectiva na comunicação. Antes eu pensava que só iria trabalhar com força física, sendo garçom ou com serviços gerais”, diz.
Jesus e os demais integrantes do grupo foram convidados para participar de uma capacitação em radiojornalismo realizada pelo Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEx) entre os dias 25 e 27 de maio. Esta foi a primeira capacitação realizada pela Operação Acolhida fora de Brasília, dentro de uma estratégia que busca criar melhores perspectivas de integração no Brasil, aumentando conhecimentos e capacidades profissionais.
A venezuelana Jossymar Ortiz, de 23 anos, trabalhava com rádio na Venezuela, mas nunca havia passado por uma formação com técnicas sobre a radiodifusão. “Esta atividade é um marco para eu poder continuar a exercer minha profissão no Brasil”, diz a solicitante de refúgio que prefere ser chamada nos programas de rádio como ‘Jossy Ortiz’.
No Brasil, Jossy integra o grupo de voluntários da rádio comunitária “La Voz de los Refugiados”. A iniciativa é desenvolvida pelo ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) em colaboração com a Associação Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI Brasil) e o apoio do Governo de Luxemburgo.
O objetivo da formação foi melhorar os conhecimentos de radiojornalismo dos participantes, impactando positivamente na qualidade dos programas transmitidos pela rádio “La Voz de los Refugiados”. “Tenho certeza que vamos voltar criando um conteúdo muito melhor em nossa rádio”, diz Jossy Ortiz.
A rádio busca enfrentar a circulação de notícias falsas entre pessoas refugiadas e migrantes, oferecendo informações seguras para a população abrigada pela Operação Acolhida e evitando confusões entre esta população.
Liderada pela população que reside temporariamente no Abrigo Rondon 3 da Operação Acolhida, a rádio é transmitida por meio de um sistema de som instalado em três outros abrigos de Boa Vista. Os conteúdos também são compartilhados por meios digitais, através do WhatsApp e redes entre os refugiados e migrantes vinculados ao projeto.
“La Voz de los Refugiados” também fomenta entre seus voluntários o pensamento crítico em relação ao consumo de mídia e dá a eles os conhecimentos e as práticas para que ingressem no mercado de trabalho por meio da comunicação social. “O Brasil debate de maneira intensa a questão das fake news. Notícias falsas distorcem a realidade e são muito perigosas durante uma pandemia, mais ainda tendo em conta pessoas que não falam português e não conhecem o país”, aponta Oscar Sanchez Piñedo, chefe de escritório do ACNUR em Boa Vista.
Primeira vez numa rádio profissional
Ao contrário de Jossy, a maior parte dos voluntários da rádio “La Voz de los Refugiados” teve nos estúdios da rádio Verde Oliva a primeira oportunidade de estar em uma rádio profissional. “Aprendi a usar os equipamentos e conversei com jornalistas. Essa formação mudou a minha ideia de trabalho no futuro”, comenta Brayan Garcez, de 20 anos, que procura na comunicação uma forma de enriquecer seu currículo.
“Quero trabalhar no setor administrativo de empresas e sei que a comunicação é uma habilidade que preciso para isso. Essa formação aumenta minhas possibilidades”, explica Brayan.
O responsável pelo planejamento de conteúdos e logístico da capacitação, Coronel Leornardo Zanini, da Força-Tarefa da Operação Acolhida, explicou que a capacitação deve ser seguida por outros cursos de diferentes áreas do conhecimento. “Esta é uma capacitação pioneira para que vocês [refugiados e migrantes venezuelanos] tenham uma reinserção profissional no Brasil. Muitas mãos foram postas nesse projeto para que a capacitação se tornasse realidade, e outras virão”.
Uma das “mãos” que foram responsáveis pelo conteúdo do curso é a da Tenente-Coronel Sylvia Martins, gerente da programação da Rádio Verde Oliva. “Apresentamos atividades do meio rádio para melhorar os conhecimentos e execução dos programas da rádio comunitária La Voz de los Refugiados, por meio de instruções teóricas e oficinas”, conta. O curso incluiu aulas sobre a criação de notas e roteiros, sonoplastia, manejo de equipamentos e criação de programação musical.
A adolescente Mariagel Guevara, de 16 anos, voluntária mais jovem de “La Voz de los Refugiados”, começou na nutrir, com a capacitação, o sonho de fazer uma faculdade de comunicação. Ela, ao lado de Jossy Ortiz, apresentou o podcast que entrevista ao Coronel Zanini sobre as experiências no curso.
O projeto da rádio comunitária “La Voz de los Refugiados” é parte de um edital de inclusão digital da Unidade de Inovação do ACNUR, , financiado pela Diretoria de Cooperação para o Desenvolvimento e Assuntos Humanitários do Governo de Luxemburgo, que tem como objetivo verificar informações impedir notícias falsas desinformem as comunidades.
As temáticas tratadas pelos voluntários são de interesse geral da população em deslocamento, como o acesso à documentação, saúde, prevenção e combate de rumores em relação à COVID-19.
“Trabalho todos os dias com voluntários e vejo a felicidade deles em ter essa formação. Essa capacitação dará a eles um conhecimento técnico mais aprofundado para combater a desinformação de refugiados e migrantes e reforçará o trabalho que fazem nos abrigos. É também uma oportunidade de enxergar novos horizontes em uma vida no Brasil”, diz Eduardo Fredi Parente, Assistente de Comunicação da AVSI Brasil.
A iniciativa da rádio comunitária, que é liderada pela comunidade desde a identificação de dúvidas até o fornecimento de informações, não é a única que atinge as pessoas que vivem o deslocamento forçado da Venezuela ao Brasil. Três indígenas que também participaram do treinamento em Brasília possuem um projeto similar em jornal impresso e rede de avisos, chamado Deje Nome (em Warao, Notícias Verdadeiras).
“O Deje Nome é para trazer a informação verdadeira e, ao mesmo tempo, lembrar ao Warao que ainda somos Warao. Principalmente o mais jovem deve ver o Deje Nome para não esquecer nossa cultura”, explica a indígena da etnia Warao, Yurkeline Marín, de 22 anos. “Vamos usar o que aprendemos de comunicação no curso em Brasília para ensinar nossos adolescentes a participarem do Deje Nome”, conta.