Quando uma dor se torna objeto de luta social? Para Carlos Gilberto, 23 anos, estudante de medicina, foi quando viu seus pais serem acometidos pelo câncer, doença que atinge milhões de brasileiros anualmente. A vivência da enfermidade se tornou uma realidade para o universitário, que em 2013, depois de diversas consultas, o pai recebeu o diagnóstico de câncer de medula óssea. Ele passou por transplante e teve uma melhora. Porém, três anos depois a doença recidivou, processo quando o câncer volta a aparecer. “Ele passou no medico várias vezes e não conseguiu um diagnóstico, me fez perceber um problema na saúde. O acesso que pessoas com menos condições financeiras tinham a uma medicina de qualidade era muito difícil. Foi aquele momento que me fez perceber que eu queria fazer diferença na vida das pessoas”, lembra.
Foi neste momento, que Carlos afirma ter “ficado mais claro” o desejo pela medicina. Entretanto, não era fácil, pois havia concorrência para a vaga, alto desenvolvimento estudantil, além dos desafios familiares, como a condição financeira. Ele conta que a maior dificuldade é o acesso de partida, pois muitas pessoas desejam passar no vestibular e que normalmente os vestibulandos vem de uma família de médicos ou até mesmo com um nível de instrução mais alto. “Quando você tem que sair de uma família muito humilde e se virar para conseguir prestar um vestibular, para conseguir dinheiro para se manter no cursinho. Eu lembro de uma situação que me marcou muito, na primeira vez que prestei cursinho, eu consegui uma bolsa de 50% para estudar. Era um valor baixo, em torno de R$ 400, só que para minha família, na época, meu pai estava afastado por causa da doença e minha mãe só tinha renda dos bordados que ela fazia. Eu vi meus pais abdicarem de uma refeição, eu lembro que tinha semana que a gente tinha de mistura só ovo pra comer e meus pais mesmo assim pagando cursinho, porque eles achavam que isso era importante pra mim e eu ia fazer um bom proveito disso. Isso me marcou muito! Agora assim, é muito diferente a pessoa que tem a condição e não tem dificuldade nenhuma para ter uma boa educação e a pessoa que precisa, muitas vezes abdicar de coisas essenciais”.
Rotina de estudos
Após formar-se no Ensino Médio pela Etec João Gomes de Araújo, Carlos chegou a cogitar outras possibilidades de profissões, como engenharia, jornalismo e até mesmo carreira militar. Mas foi a sensibilidade com o sofrimento dos pais que o fez seguir o chamado pela medicina. Após o segundo diagnostico do pai, Carlos passou a estudar cerca de 16 horas por dia. Estudava incansavelmente, pois via o esforço da família em mantê-lo no cursinho vestibular. Ele fala que seus pais tiveram um papel crucial, tanto na motivação, quanto no exemplo prático. “Minha mãe foi a principal pessoa que me apoiou toda a vida, ela dizia assim: ‘filho, eu não tenho dinheiro. A gente não tem condição. Mas, tudo que eu posso te dar é estudo. Mesmo com todas as dificuldades… Não consigo te colocar numa escolar particular, mas tudo que eu puder fazer para você ter um estudo, eu vou fazer”, recorda emocionado. Para ele, isso foi essencial para continuar e conquistar uma condição melhor de vida para si e os pais.
A batalha contra o câncer
Depois do pai ter sido diagnosticado com uma reincidência do câncer, no começo de 2016, houve tentativas de melhorar a sua condição de saúde, mas o estado da doença estava avançado e precisou de internação. Carlos conta que foi neste momento que sentiu que ele acreditava mais em seu sonho, pois anteriormente ele dizia: “medicina é para rico, você tem que entender que a gente é pobre. Por que você não tenta algo mais fácil e que consiga passar?”. Hoje, o jovem analisa o discurso do pai como um meio de protegê-lo de possíveis frustrações, caso não alcançasse o sonho. Mas, o discurso foi mudado ao longo da internação. “Ele viu todo o meu esforço através do estudo. Ele passou acreditar em mim, como ninguém. Lembro que um pouco antes dele ser intubado, ele me disse assim: “filho, você vai ser o que quiser”. Ele falava para todos os médicos e enfermeiros que o filho dele iria ser médico. Apesar de toda a dificuldade, isso me faz brilhar os olhos e dizer: “é por eles que estou fazendo isso”. Porém, em maio daquele mesmo ano, o pai faleceu devido a uma falência múltipla de órgãos, causada por uma infecção generalizada.
Em janeiro do ano seguinte, também foi identificada na mãe, o câncer de endométrio. Carlos relata que inicialmente ela estava bem, mas a dor de perder o marido e viver a doença na pele a levou para um quadro de depressão. “Eu precisava estar forte para ajudar minha mãe e ainda dar conta do vestibular. Foi muito difícil esse processo de manter o foco em estudar e ajudá-la a ficar bem emocionalmente e também conforme o ano foi passando, ela foi piorando muito. Era um tumor maligno, o quadro da doença evolui muito rápido. Tanto é que no final de 2017, ela precisava fazer uso da ostomia, só ficava acamada e emagreceu muito. Antes, minha mãe pesava 60 kg, ela chegou à metade. Foi muito difícil ver a minha mãe daquela forma e ainda assim prestar o vestibular”, contou.
Aprovação na Faculdade de Medicina
Era mais um dia de acompanhando a mãe em uma sessão de quimioterapia, no Hospital Regional do Vale do Paraíba, quando Carlos recebeu a notícia que havia passado na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. “Estávamos no subsolo, até que saiu a lista e eu contei pra minha mãe, entrei na sala, e os olhos dela brilharam muito e dizia para todos os enfermeiros: ‘meu filho vai ser médico’ e assim… foi uma felicidade muito grande”, recordou. Porém, infelizmente, a mãe dele também faleceu por complicações da doença, pouco tempo depois.
Mudança de realidade e os “3P’s”
Apesar de vivenciar de perto toda a agressividade do câncer e viver o “baque” de perder as pessoas que lhe amaram e acreditaram em seus sonhos, Carlos conta que tudo isso o fez desejar ser “a pessoa que vai mudar a vida e a saúde da população em geral”. Ele já proteja os sonhos para depois de se formar: atuar diretamente na saúde pública, através da cirurgia geral e oncológica. “Primeiro que a parte oncológica, brilha meus olhos… Todo o peso dos meus pais e o sofrimento deles, tanto é que tenho dificuldade de lidar com o sofrimento da pessoa com câncer. Mas, enxergar ali a oportunidade de melhorar a vida dessa pessoa, mexe comigo como nenhuma outra coisa. E a cirurgia porque quero ser resolutivo, acho que a oncologia tem um avanço muito grande e melhora a vida das pessoas. Mas, eu gosto de centro cirúrgico, gosto da parte manual das coisas e com a cirurgia poder curar um determinado tumor. Isso, me motiva muito. Isso é só uma parte”.
Além disso, ele desenvolveu os “três Ps” que é um método que ele pretender ajudar as pessoas. O primeiro é a prática que deve ser alcançada por meio dos atendimentos oncológicos; o segundo é a pesquisa para desenvolver mais tratamentos e se tornar uma referência na área; e o terceiro é política para viabilizar o atendimento para as pessoas que mais precisam.
Mais do que um grande sonhador, Carlos é também um exemplo de resiliência de quem encontrou força e estímulo, através da dor.
Confira a mensagem do jovem estudante para aqueles que desejam estudar medicina: