Ações que democratizam o acesso a alimentos orgânicos no Estado de São Paulo estão em pleno desenvolvimento por iniciativas públicas e privadas. Uma horta hospitalar em Cotia atende pacientes de 700 leitos das seis unidades da rede São Camilo e hortas escolares de Jundiaí servem alunos de 70% da rede municipal e estadual do ensino fundamental da cidade.
Projetos como esses permitem que parte da população tenha acesso a produtos diferenciados, o que tem sido estimulado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), por meio de ações de fomento à produção e ao consumo de alimentos orgânicos. Depois de lançar em todo o Brasil a 17ª Campanha Anual de Promoção do Produto Orgânico, em julho, o Mapa vem multiplicando as atividades de incentivo nos estados, por meio das comissões estaduais de produção orgânica, as chamadas CPOrg.
De acordo com a agente de inspeção e ponto focal da Superintendência Federal de Agricultura de São Paulo (SFA-SP) em Orgânicos, Mariane Antunes Lopes, o ministério fomenta a produção e o consumo de orgânicos por meio do fornecimento de informações técnicas, da inserção de produtores em redes, da promoção de eventos, da formulação de políticas públicas, da pesquisa agropecuária e da própria fiscalização, que gera segurança a um mercado cada vez maior e mais competitivo.
Uma das políticas públicas já implementadas no país é o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), que permite às prefeituras pagarem até 30% a mais por produtos orgânicos – embora elas não sejam obrigadas a isso. “Tudo depende de uma negociação prévia”, explica Rodrigo Cortez, chefe da Divisão de Desenvolvimento Rural da SFA-SP.
Entre 2013 e 2015 e entre 2016 e 2019, o governo federal articulou diversos ministérios e instituições públicas para lançar o Planapo – Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, um instrumento da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo). Foram dois planos que incentivaram a articulação entre agentes públicos e privados em torno da agroecologia e que contribuíram para incorporar o tema em processos de planejamento e implementação de políticas públicas em diferentes esferas de governo.
Um exemplo é a Prefeitura de São Paulo, que publicou em 2015 a lei nº 16.140, regulamentada no ano seguinte pelo decreto nº 56.913, que torna obrigatória a inserção gradual de alimentos orgânicos ou de base agroecológica na merenda escolar da rede municipal. A estimativa é que essa inserção atinja 100% até 2026 – cerca de 2,2 milhões de refeições diárias –, mas o plano pode ser revisto a cada dois anos.
No site do Mapa é possível encontrar outra iniciativa bastante útil para interessados no assunto: as fichas agroecológicas. São 103 dicas de sanidade vegetal, fertilidade do solo e nutrição das plantas, práticas conservacionistas e produção vegetal com soluções simples e testadas para sanar problemas numa concepção agroecológica.
O Mapa também mantém em seu site um cadastro nacional de produtores orgânicos. Um dos nomes mais recentes desta lista com mais de 25 mil agricultores é o da Sociedade Beneficente São Camilo, também chamada de Horta Urbana São Camilo. A instituição obteve a certificação em 26 de julho deste ano, ao reestruturar uma antiga horta abandonada na unidade do hospital em Cotia. Vamos conhecer essa experiência?
CONFIRA VÍDEO SOBRE AS DUAS HORTAS
HORTA URBANA SÃO CAMILO
Quando assumiu a direção da rede de hospitais São Camilo, em 2018, a atual CEO Aline Thomaz decidiu recuperar a área onde antes havia uma horta de subsistência. “Era um espaço subutilizado e a horta antiga era pouco produtiva”, contou. Ela também tinha a intenção de reduzir o consumo de produtos processados nas refeições dos pacientes, dos funcionários e dos acompanhantes.
Naquele mesmo ano, a rede estabeleceu uma parceria com o Instituto Kairós, uma organização que desenvolve projetos com o poder público, entidades privadas e redes para o desenvolvimento da agroecologia. Começou ali a readequação da horta e sua conversão para o modelo orgânico. Além de verduras e legumes convencionais, a equipe do Kairós introduziu as chamadas Panc (Plantas Alimentícias Não Convencionais) no espaço de cultivo.
Um dos destaques que o hospital faz questão de mostrar é a guasca, uma planta espontânea, que nasce onde haja sol e um pouco de umidade. O hospital desidrata a erva e a utiliza para substituir o sal na alimentação hospitalar. “Reduzir o sódio para pacientes hipertensos é de extrema importância. Essa planta, da família do picão, salga sem ter o sódio. Passamos a acrescentar nas carnes e guarnições. A dieta passou a ter mais sabor. Muita gente a considera mato, mas pra gente ela é ouro”, disse Aline.
A nutricionista Tatiana Bononi, que responde pela nutrição de toda a rede hospitalar São Camilo, disse que a possibilidade de utilizar a alimentação como forma de tratamento é gratificante para os profissionais de saúde. “Temos orgulho de informar aos pacientes e seus familiares que eles recebem alimentos da nossa horta”, afirmou.
O superintendente da Sociedade Beneficente São Camilo, padre Antônio Mendes, é um entusiasta da horta e pretende expandir o conceito da agroecologia para toda a rede. “Nosso embrião é aqui, na granja Viana, mas a ideia é transpor essa prática para os 44 hospitais geridos pela rede no país, onde existem 5.000 leitos. A horta orgânica tem como meta a entrega de 20 caixas de produtos orgânicos por semana para cada um dos seis hospitais de São Paulo, abastecendo pacientes de 700 leitos, seus acompanhantes e funcionários.
Para isso, é preciso manter a estrutura já organizada e pensar num plano de expansão. Um dos coordenadores do Kairós, o agrônomo Mauro Spalding falou que o espaço da horta no São Camilo já dobrou, desde março de 2020, e está dobrando de tamanho novamente, chegando a quase 12 mil metros quadrados. O instituto está promovendo a articulação no território para que pequenos produtores de hortaliças da região se envolvam com a transição agroecológica e possam ajudar o hospital a suprir a demanda desses alimentos.
HORTA VALE VERDE
A pouco mais de uma hora do centro de São Paulo, em Jundiaí, está instalada a horta Vale Verde, um projeto da prefeitura que obteve a certificação orgânica há cerca de 13 anos. Ali fica uma grande horta de Panc, com cerca de 4 mil metros quadrados, que recebeu ações de transferência de tecnologia da Embrapa Hortaliças (Brasília-DF), empresa de pesquisa agropecuária vinculada ao Mapa.
De acordo com Maria Ângela Delgado, diretora do Departamento de Alimentação e Nutrição da Prefeitura de Jundiaí, a produção abastece 70% dos alunos das 110 escolas municipais e de 40 escolas estaduais, com as quais a prefeitura mantém convênio. Em mais de 80 escolas municipais foram instaladas hortas que recebem mudas da Vale Verde.
“Não é só um espaço de produção. Com o passar do tempo nós entendemos que essa horta seria produtiva também em relação à educação. É um espaço de visita para as crianças”, contou Ângela.
A iniciativa envolve parceria com a Escola Técnica Estadual Benedito Storiani, do Centro Paula Souza, que cedeu o espaço. O Instituto Kairós também está envolvido com o projeto, conduzindo a horta e incrementando ações de treinamento do capital humano e de educação das crianças.
Guilherme Ranieri faz parte da equipe do Kairós e fez seu mestrado em Ciência Ambiental sobre levantamento etnobotânico de plantas alimentícias em quintais urbanos. Curioso desde sempre sobre plantas, ele pesquisa não apenas o uso alimentício de algumas delas, mas também como se dá a transmissão do saber entre a população que cultiva Panc em casa.
É com orgulho que Guilherme apresenta a diversidade de plantas alimentícias da horta de Jundiaí. “A gente envia para as escolas, ao longo do ano, entre 25 e 35 espécies, fora as plantas aromáticas e condimentares. A gente faz essa ponte entre essa horta e as hortas das escolas”, comentou.
A capacitação envolve as cozinheiras, zeladores, professores e alunos. Além de informações funcionais e nutricionais, há um cuidado para contextualizar cada planta, mostrar de onde veio, como deve ser cuidada. “É preciso criar um encantamento. O argumento nutricional não faz sentido para as crianças. A gente tenta criar um valor afetivo para que elas se interessem”, explicou. Segundo Guilherme, a horta é usada também para trabalhar habilidades do currículo, como autocuidado e cuidado com os outros, observação, paciência, respeito à diversidade e até disciplinas, como matemática. “É uma sala de aula a céu aberto.”
Para Mariane Lopes, que também é suplente da secretaria executiva da CPOrg-SP, essa pegada educativa é um grande diferencial dessa horta de Jundiaí. “As crianças visitam, se envolvem e criam um outro tipo de valorização desses alimentos”, afirmou.
EMBRAPA
O pesquisador Nuno Madeira, da Embrapa Hortaliças, esteve em Jundiaí em 2018 para capacitar em fitotecnia os agentes que iriam trabalhar no manejo da horta. “A horta Panc do Vale Verde é um tesouro, um patrimônio incalculável, sendo uma das mais biodiversas hortas que conheço, possivelmente a maior do país juntamente com nosso campo de coleção de hortaliças Panc da Embrapa Hortaliças”, disse ele.
Além disso, continua, “a horta aplica técnicas agroecológicas para potencializar a produção e a disponibilização de alimento de verdade, de qualidade, contribuindo para a segurança e soberania alimentar e nutricional das escolas que atende. E, para além da produção de alimentos, é um espaço de produção e difusão de conhecimento relacionados às hortaliças Panc, devendo ser preservado, incentivado e fortalecido”, afirmou Nuno.
O pesquisador também é idealizador do HortPanc (Encontro Nacional de Hortaliças Não Convencionais), um evento técnico que começou em Brasília em 2017, migrou para São Paulo em 2018, Paraná em 2019 e acontecerá em novembro deste ano na Bahia, de forma virtual em função da pandemia de coronavírus. Na versão paulista, além do conteúdo técnico focado em horticultura e agronomia, houve articulação do Kairós para um evento gastronômico que ofereceu a convidados alimentos preparados por chefs.
LIVES
As experiências acima e outros casos de sucesso de produção orgânica estão sendo contadas em lives promovidas pela CPOrg-SP entre setembro e novembro, como parte da campanha estadual de Promoção do Produto Orgânico. As experiências de Cotia e Jundiaí foram incluídas na programação, que conta ainda com conteúdo sobre nutrição, equipamentos e ferramentas, mercado de leite orgânico, protocolo de transição agroecológica do Estado de São Paulo, entre outras. Os vídeos ficam disponíveis no canal da CPorg-SP no YouTube.