Além de estudar a fundo um tema, realizar inúmeros experimentos, analisar e comparar resultados para, enfim, consolidar conclusões, faz parte da rotina dos cientistas escrever e publicar os tão falados artigos científicos. Seguindo uma estrutura específica – geralmente composta por introdução, metodologia, resultados e referências –, essas publicações devem trazer dados inéditos e que proponham avanços significativos ao campo ao qual se referem.
Para se ter uma ideia, só nos primeiros três meses de 2023, o Butantan publicou mais de 60 estudos em periódicos de relevância nacional e internacional. Entre eles, está um artigo que foge ao padrão: publicado em fevereiro na Frontiers for Young Minds, A Blessing in Disguise: From Fish Venom to Novel Medicines (Peixes Especiais: do Veneno de Peixe a Novos Medicamentos, em tradução livre) foi um estudo editado por e para crianças.
“Considero esse artigo algo ímpar na minha vida. Trata-se de um material que é, em essência, um trabalho de difusão. Isso porque une a parte de disseminação, que já fazemos rotineiramente com a publicação de estudos, e de divulgação científica, uma vez que é dedicado a um público não especializado”, conta a pesquisadora científica do Laboratório de Toxinologia Aplicada (LETA) do Butantan e coautora do material Mônica Lopes-Ferreira.
Estruturado em parceria com outros três pesquisadores do LETA, Geonildo Rodrigo Disner, Maria Alice Falcão e Carla Lima, o objetivo do artigo era contar sobre a existência de peixes peçonhentos como o niquim (Thalassophryne nattereri), a descoberta de novas proteínas presentes no veneno da espécie com potencial ação anti-inflamatória, além de reforçar a importância da plataforma Zebrafish para a realização de ensaios pré-clínicos – etapa em que os testes são feitos em modelos animais.
Mônica afirma que um dos pontos que mais despertou sua atenção e a motivou a seguir com a produção do texto foi o fato dos revisores serem crianças – tradicionalmente, os artigos são revisados por “pares”, ou seja, profissionais muito acostumados ao uso de uma linguagem técnica e já inseridos no universo dos temas abordados. No caso dos Peixes Especiais, alunos “superdotados e talentosos”, fãs de lego e chocolate, entre 8 e 9 anos, de um colégio do Texas, nos Estados Unidos, foram os responsáveis por indicar se a história apresentada era interessante e compreensível.
A primeira versão do artigo foi submetida para análise da revista em março de 2022, e seis meses depois veio o retorno. Apesar de acumular 118 publicações em títulos especializados, Mônica conta que precisou reescrever o artigo após receber o feedback de seus revisores mirins.
Um trabalho nada simples
O processo de revisão dos artigos enviados à Frontiers for Young Minds é feito em parceria com escolas dos Estados Unidos que fomentam o olhar científico. A leitura do material elaborado pelos especialistas conta com o auxílio de um professor, que ajuda os pequenos a responderem a uma série de perguntas a fim de identificar o nível de compreensão que eles tiveram. No caso do texto dos cientistas brasileiros, os alunos pontuaram que, apesar de terem achado a história interessante, alguns pontos estavam confusos. Para facilitar o entendimento, sugeriram a inclusão de ilustrações, de um glossário para interpretação de palavras desconhecidas e descrições mais detalhadas de determinados trechos, como a parte do artigo que explora a jornada de desenvolvimento de um medicamento.
Durante um mês, Mônica se dedicou à produção de uma segunda versão do artigo. Antes, fez o exercício de relatar oralmente para outros colegas a história que gostaria de contar. “Entendi que aquele artigo representava muito da minha jornada. Implementei o estudo de peixes peçonhentos no Butantan, e costumo dizer que foi o niquim que me tornou doutora, pois realizei muitas descobertas com ele.” A pesquisadora também afirma que queria estimular um olhar mais amplo sobre os venenos, apresentando o potencial “lado bom” da substância.
Enviada a nova versão, veio a resposta final: o artigo estava devidamente aprovado pelas crianças do colégio norte-americano, e as conclusões compartilhadas por elas confirmaram que a mensagem do artigo havia sido perfeitamente captada. “Um dos alunos escreveu: ‘do mar à bancada, como um peixe traçou a trajetória de um cientista’. Outro disse: ‘tem suspense, aos poucos fui sendo apresentado ao peixe niquim.’ Quando li os comentários fiquei muito emocionada”, pontua Mônica.
Para finalizar a ação, a revista promoverá um encontro virtual entre os revisores da escola do Texas e os autores brasileiros. A pesquisadora do Butantan também planeja levar o artigo produzido às escolas brasileiras, em mais um esforço para tornar a ciência acessível para todos os públicos. “Abraçar o ofício de cientista implica em inúmeros comprometimentos, e produzir conhecimento além do técnico é um deles. Não acredito naquela história de ‘nem conto, porque você não vai entender’. É nosso papel garantir que a ciência seja feita com e para toda a sociedade”, finaliza.