O Papa Francisco proferiu o seu primeiro discurso em terras francesas, na manhã deste domingo (15/12), na conclusão do congresso sobre “Religiosidade Popular no Mediterrâneo”, no Palácio de Congressos e Exposições de Ajácio, capital da Córsega, no âmbito de sua 47ª viagem apostólica internacional.
“As terras banhadas pelo Mar Mediterrâneo entraram na história e foram o berço de muitas civilizações que alcançaram um desenvolvimento notável”, disse o Papa no início de seu discurso, recordando “o caso das civilizações greco-romana e judaico-cristã, que atestam a relevância cultural, religiosa e histórica deste grande “lago” no meio de três continentes, deste mar que é único no mundo: o Mediterrâneo”.
“Não podemos esquecer que na literatura clássica, tanto grega quanto latina, o Mediterrâneo foi muitas vezes cenário ideal para o surgimento de mitos, contos e lendas. Para além do fato de o pensamento filosófico e as artes, juntamente com as técnicas de navegação, terem permitido às civilizações do Mare nostrum desenvolver uma cultura elevada, abrir vias de comunicação, construir infraestruturas e aquedutos e, mais ainda, sistemas jurídicos e instituições de grande complexidade, cujos princípios básicos continuam ainda hoje válidos e atuais”, disse ainda Francisco.
Diálogo que culmina na presença singular de Jesus
De acordo com o Pontífice, “entre o Mediterrâneo e o Oriente Próximo, teve origem uma experiência religiosa muito particular, ligada ao Deus de Israel, que se revela à humanidade e inicia um diálogo incessante com o seu povo, culminando na presença singular de Jesus, o Filho de Deus, Aquele que deu a conhecer definitivamente o rosto do Pai, seu e nosso Pai, e que levou a cabo a Aliança entre Deus e a humanidade”.
Passaram mais de dois mil anos desde a Encarnação do Filho de Deus e muitas épocas e culturas se seguiram. Em certos momentos da história, a fé cristã inspirou a vida dos povos e as suas próprias instituições políticas, enquanto hoje, especialmente nos países europeus, a questão sobre Deus parece estar a esmorecer e se descobre cada vez mais indiferentes no que diz respeito à sua presença e à sua Palavra.
“No entanto, devemos ser prudentes na análise deste cenário, para não nos deixarmos levar por considerações apressadas e concepções ideológicas que, por vezes, ainda hoje, opõem a cultura cristã à cultura laica”, acrescentou ele.
A piedade popular revela a presença de Deus na carne viva da história
Segundo o Papa, “importa, pelo contrário, reconhecer uma abertura recíproca entre estes dois horizontes: os que creem abrem-se com serenidade cada vez maior à possibilidade de viver a sua fé sem a impor, como fermento na massa do mundo e dos ambientes em que vivem; os não que não creem ou aqueles que se afastaram da prática religiosa não são alheios à procura da verdade, da justiça e da solidariedade e, muitas vezes, mesmo não pertencendo a qualquer religião, trazem no coração uma sede maior, uma procura de sentido que os leva a interrogar o mistério da vida e a procurar valores fundamentais para o bem comum”. “É neste quadro que podemos compreender a beleza e a importância da piedade popular”, disse o Papa, acrescentando:
Ao exprimir a fé com gestos simples e uma linguagem simbólica enraizada na cultura do povo, a piedade popular revela a presença de Deus na carne viva da história, fortalece a relação com a Igreja e torna-se muitas vezes oportunidade de encontro, intercâmbio cultural e festa. Neste sentido, as suas práticas dão corpo à relação com o Senhor e aos conteúdos da fé, permitindo que esta se incarne verdadeiramente na vida e na história.
Atenção contínua às formas populares da vida religiosa
«Na piedade popular, pode-se captar a modalidade em que a fé recebida se encarnou numa cultura e continua a transmitir-se», e, por isso, nela «subjaz uma força ativamente evangelizadora que não podemos subestimar: seria ignorar a obra do Espírito Santo», disse ainda o Papa, citando trechos da Exortação apostólica Evangelii gaudium.
Naturalmente, também esta realidade deve ser sempre vigiada, com um atento discernimento teológico e pastoral. Na verdade, corre-se o risco das manifestações de piedade popular se limitarem a aspectos exteriores ou folclóricos, sem conduzir ao encontro com Cristo, de se contaminarem com aspectos e “crenças fatalistas ou supersticiosas”. Ou – outro risco – da piedade popular ser utilizada, instrumentalizada por associações que pretendem reforçar a sua própria identidade de forma polêmica, alimentando particularismos, contraposições, atitudes de exclusão. Tudo isto não responde ao espírito cristão da piedade popular e interpela todos, especialmente os pastores, a vigiar, discernir e promover uma atenção contínua às formas populares da vida religiosa.
A Piedade Popular e “cidadania construtiva” dos cristãos
“Quando a piedade popular consegue comunicar a fé cristã e os valores culturais de um povo, unindo os corações e amalgamando uma comunidade, então nasce um fruto importante, que incide em toda a sociedade e também nas relações entre as instituições civis e políticas e a Igreja.
A piedade popular, as procissões e as rogações, as atividades caritativas das confrarias, a oração comunitária do santo Rosário e outras formas de devoção podem alimentar esta “cidadania construtiva” dos cristãos”, sublinhou ainda o Pontífice.
“Daí a necessidade do desenvolvimento de um conceito de laicidade que não seja estático e rígido, mas evolutivo e dinâmico”, disse ainda o Papa, “capaz de se adaptar a situações diversas ou imprevistas, e de promover uma cooperação constante entre as autoridades civis e eclesiásticas para o bem da comunidade inteira, cada um dentro dos limites da sua própria competência e do seu próprio espaço. Desta forma, sem preconceitos nem oposições de princípio, poderão ser disponibilizadas mais energias e sinergias num diálogo aberto, franco e fecundo”.
Diálogo constante
Caríssimos, a piedade popular, muito enraizada aqui na Córsega, faz emergir os valores da fé e, ao mesmo tempo, exprime o rosto, a história e a cultura dos povos. É neste cruzamento, sem confusão, que se concretiza o diálogo constante entre o mundo religioso e o mundo laico, entre a Igreja e as instituições civis e políticas.
O Papa encorajou “os jovens a participarem ainda mais ativamente na vida sociocultural e política, com o impulso dos ideais mais saudáveis e com a paixão pelo bem comum. De igual modo, exorto os pastores e os fiéis, os políticos e os responsáveis públicos a permanecerem sempre próximos do povo, escutando as suas necessidades, compreendendo os seus sofrimentos, interpretando as suas esperanças porque, qualquer que ela seja, a autoridade só cresce na proximidade”.
“Desejo que este Congresso sobre a piedade popular os ajude a redescobrir as raízes de sua fé e os impulsione a um renovado compromisso na Igreja e na sociedade civil, a serviço do Evangelho e do bem comum de todos os cidadãos. Que Maria, Mãe da Igreja, os acompanhe e os assista em seu caminho”, concluiu Francisco.