
As páginas dos livros da história da construção de Brasília, essa jovem senhora de 65 anos, estão repletas de discursos oficiais e de percursos e ideais de engenheiros, arquitetos e gestores. Em geral, homens e brancos. Quase como figurantes, os operários homens surgem anônimos, mas de alguma forma contemplados no fundo da cena, com o codinome de “candangos”.
No entanto, a participação das mulheres, e em particular as negras, foi praticamente omitida e apagada. Mas, a capital ainda é novae a história está em permanente recolocação dos tijolos, em reedificação de pensamentos, conforme alegam familiares das pessoas hoje reconhecidas como matriarcas.
As mulheres negras também construíram, educaram, defenderam ideais, atacaram o racismo e transformaram o novo lugar em uma cidade. Conforme defendem pesquisadoras, é tempo ainda de reescrever essa história, rejuntar trajetórias e mobilizar os olhares do passado, do agora e do amanhã. Um dia, argumentam estudiosas brasilienses, os livros poderão fazer justiça para honrar os nomes, as lutas e as palavras delas.
Em versos
As palavras da matriarca negra Jovina Teodoro foram transmitidas em prosa e versos, desde 1959, quando se mudou com a família, aos 20 anos de idade, de Formosa (GO) para Brasília, antes da nova capital ser inaugurada. Ela era a terceira dos 13 filhos do marceneiro Antônio e da dona de casa, Ana Julieta.
Jovina era recém-formada em enfermagem e começou a trabalhar no Hospital Juscelino Kubitschek, antes das festas da inauguração, segundo contaa filha mais velha, a antropóloga Ana Julieta Teodoro (foto),xará da avó, de 48 anos. Jovina morreu em março deste ano, aos 85 anos de idade. A matriarca trabalhava para atender, em geral, os operários fraturados nas obras e também para realizar partos.
Ela contextualiza que Jovina era uma pessoa de vanguarda pela saúde pública.
“Minha mãe trabalhou com saúde da mulher e na conscientização pelo parto humanizado”. A pioneira foi uma das participantes do Brasília Mulher, um grupo de feministas nas décadas de 1970 e 1980 que promoviam reflexões e tentativa de atuação política mesmo em um contexto da ditadura militar.
A matriarca tinha postura de independência e liberdade, diferente de padrões da época. Engravidou “apenas” aos 38 anos de idade, e depois, nos anos 1980, separou-se do marido em uma época que “desquitar” era caso raro.
“Trata-se de uma sociedade que sempre julgou muito. Em especial, mulheres negras, empoderadas, e com coragem de ser quem elas querem ser”, diz Ana Julieta.
A filha de Jovina, inclusive, exemplifica que parte da postura também representou legados simbólicos, como o fato de não alisar cabelo mesmo contrariando imposições e comentários racistas. A enfermeira tinha sensibilidade artística e social, e publicou três livros de poesia.
Temas relacionados a questões de gênero e meio ambiente inspiraram a mulher, como nos versos deLição de Brasília: Só me resta mesmo/ uma única esperança:/ que no concreto da lição (…) haja uma brecha – ínfima que seja -/ por onde possa adentrar um fio/um fio d´água/vindo da nascente”.
A filha pretende, agora, fazer uma edição póstuma com 40 textos inéditos da enfermeira que enxergava o mundo e a luta do dia a dia em versos.